A brasília pra sempre amarela de nossa infância
Nos joelhos ardia que era uma delícia.
As pessoas da minha geração cresceram todas sádicas, porque sempre que algo dói elas acham que estão desinfectando. Tudo que uma criança precisava era de merthiolate em cada machucado, 30 gotas de novalgina se tivesse febre e biotônico fontoura antes das refeições numa colher de sopa, olha o aviãozinho, que quase não cabia na boca.
Rita espanava a estante da tevê, não tinha essa coisa de rack-painel, espanava a estante, espanava a tevê de tubo e finalizava dando brilho no chão de madeira com auxílio da enceradeira. Cera vermelha e pastosa vinha numa lata redonda, deixava cheiro forte pela casa, cheiro de Rita trabalhou duro manhã inteira, quando eu chegava da escola. Cheiro parecido com o desse saguão – a Rita trabalha aqui? Não... ela voltou a morar na Bahia dois anos depois, na mesma época em que perdemos a final para a França.
Domingo no 4, um homem e uma mulher se enfrentavam numa banheira. O desafio dela é pegar o sabonete; o dele, impedir. A gente almoça no sofá sem piscar. Quanta espuma, quanta pele brilhante, que difícil pegar esse sabonete, ninguém parece estar preocupado com o sabonete, desliza muito, muita pele, muita pele brilhante, risadinhas. Depois da atração, o Dinho vestido de Batman, a gente pula ao som da guitarra. Pâm-pam pam-paaam, pâm-pam-pam-paaam! A mãe grita não façam isso, vocês acabaram de almoçar! E a gente nem ouve.
Rita baixa o volume obrigando-nos a sentar no chão, em frente à tela, para ouvir melhor. Retira os pratos da mesa e vai para a cozinha lavar, rindo de nós, nesse momento nossa mãe já está reclamando ‘faz mal ficar tão perto!’ e ‘vão estragar a vista!’ então a gente arrasta a bunda pra menos perto, mas negocia dois palitos do volume. Só mais um palito, Rita. Ela lava rápido, já voltou pra ficar conosco, só vai embora mais tarde. Ainda precisarei muito dela.
Hoje eu chego cedo para fazer surpresa, baby, vamos dançar na sala do apartamento e comemorar. Rack-painel, tela de led, piso de granito. Eles gostaram,
consegui o cliente! É claro que eu vou chegar cedo,v amos comemorar... É que isso não me sai da cabeça. Do carnaval daquele ano, as 36 fotos do rolo nos mostram vestidos de presidiários juvenis com colares de chupetas gigantes, os adultos fazendo churrasco lá fora, a fita cassete do pagode temperado com sazon do tempo de namoro só tiravam do rádio para trocar de lado. E a gente do lado de dentro ouvindo a paródia daquele romance brega, o Dinho imitando a língua presa do cantor, a mesa cheia de pitchulinha bolo salgadinho brigadeiro.
Na mesma semana, deu no programa do Gerson Rubens que netuno está com uma energia atribulada com marte e plutão oposto ao sol, ouvi coisas impressionantes, vai ter acidentes, a vidente falou. Baby, eu só quero chegar rápido e entrar devagar. Devagar e silenciosamente, sem que você perceba. Te encontrar enrolada no lençol assistindo filme, metade da coxa de fora, os cabelos espalhados pelas fronhas. Eu só quero chegar rápido.
O jatinho dos meninos caiu lá na Serra da Cantareira. Novalgina nem merthiolate vão fazer diferença agora, Rita! O biotônico não foi suficiente pra me deixar forte, eu fui deitar abraçando o travesseiro no peito, você assistiu o plantão urgente, baby? Apertando travesseiro contra o peito, a vida se despedaçava de repente enquanto a gente dançava vira-vira, o cara mais legal do mundo acabou a alegria numa queda só porque plutão resolveu brigar com marte. A Rita me falou que era mentira astrologia. Que eles morreram, é verdade. Não, Rita!
Não, Rita...
Ao longo dos dias, mais detalhes, destroços, meu primo me chama pela janela da sala, vem, todo mundo já viu, tem foto dos pedaços dos
corpos / os meninos / nós
sem fantasias
chapolim, sabão-cracrá, nada de bolo guaraná bala de coco e o robocop gay
tudo destruído, Rita, eles me mostraram!
A gente pedia pra dormir na mesma cama, eu filha única, o primo Gui, a Natalie e os gêmeos, ficávamos olhando as estrelas que brilhavam no escuro do teto do quarto / os astros / pedimos para tirar quase todos, deixar cinco, a Rita ajudou, o braço dela era longo, alcançava teto, o céu. Um longe que a gente chama de vários nomes.
A partir de agora, três ou quatro vezes por mês eu farei a ponte aérea, exigência do cliente. Depois de passar pela triagem, numa das malas de mão, me dizem que as velas que escolhi para nossa noite são um arsenal de pólvora, sou aconselhada a despachar junto com a bolsa maior. Indo de volta para a área de check in quando todas as outras pessoas estão vindo, um grupo grita para me chamar a atenção, tantos desconhecidos gritando ao mesmo tempo, você deixou cair o casaco, ah, é isso, é só isso, é assim quando a gente é famoso? Desconhecidos gritando seu nome, é a pior coisa do mundo, baby, hoje todos querem ser famosos, as pessoas da nossa geração são sádicas.
A turbina inicia o ruído, me ajeito na almofada, puxo a venda, são só quarenta minutos de voo. A Rita falando comigo: engole toda a novalgina, se a febre não passar sua mãe vai ter que te levar pro hospital, Rita assoprando meu joelho, essas coisas acontecem, menina, cai menina, cai avião.
Vinte e três anos depois, 3 de março se repete como se repete todo ano. Rita tomava conta de mim e dos primos até dizer que estava na hora de voltar pra Bahia. Partiu na brasília pra sempre amarela de nossa infância. O piloto já deu partida, eu devo estar aqui porque sou sádica, baby! A aeromoça nos pede que deixemos as janelas bem abertas, e o motor faz pãm-pãm-pãm. Rita segurando minha mão e falando, arde para desinfectar, pelo menos hoje eu chego cedo, baby, pra chegar logo tenho que tomar o avião, uma colher de b-abá, b-e-bê, b-i-bí, bi-o tônico, abre a boca, olha o avião.
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