Analfabeta em África
Como tantos brasileiros, sou descendente de negros escravizados. E analfabeta em África.

Adinkras em portões, janelas e calçadas: idioma silencioso.

Descendente de negros e tupis, coisa de duas gerações atrás – descobri num teste de DNA. Além do sequestro de corpos / encarceramentos / e da história, também a minha própria / o apagamento. Quantos % preta? Quantos % índia? Quantos % brasileira?
(E que significa isso mesmo?)
Em minha família, não há relatos de meus parentes de pele escura. Meu teste de DNA me diz que viemos da costa africana banhada pelo Atlântico. Países em cujas baías atracaram navios negreiros, a fim de comercializar seres humanos para servirem de mão de obra.
Meu rosto não conta; minha pele já se esqueceu.
O filósofo racista alemão Hegel afirmou que “um povo sem escrita, é um povo sem história”. (Afinal, a única maneira de um povo ser respeitável, digno e agente do movimento da história universal era viver de acordo com o mesmo sistema de circulação de conhecimento que o produzido pela Europa, disseminado em páginas / cópias / impressas de livros.) A questão, vejam só, é que Hegel era analfabeto em África.

Rotas de navios negreiros: origens.
O que é escrita
São Paulo, 2020. Toco a campainha e, enquanto espero minha amiga Juliana me receber, observo os corações-ornamentos do portão de ferro de sua casa. Tenho vinte e oito anos e também sou analfabeta em África.
Viro à direita, na Avenida Santo Amaro, onde a estátua de Borba Gato, ruiva e armada, também decora o bairro. Este homem, que tinha por profissão escravizar e assassinar indígenas, foi apresentado durante meus primeiros anos escolares como herói desbravador de matas virgens, abrindo caminho para a fundação de cidades, em favor do progresso, numa época em que se pensava como Hegel. Sobre os nativos americanos, Hegel escreveu
“(...) ainda custará muito até que europeus lá cheguem para incutir-lhes uma dignidade própria. A inferioridade desses indivíduos, sob todos os aspectos, até mesmo o da estatura, é fácil de se reconhecer.”¹
e sobre os africanos,
“O negro representa, como já foi dito, o homem natural, selvagem e indomável. (...) Neles, nada evoca a ideia de caráter humano. (...) Entre os negros, os sentimentos morais são totalmente fracos – ou, para ser mais exato, inexistente. (...) Com isso, deixamos a África. Não vamos abordá-la posteriormente, pois ela não faz parte da história mundial; não tem nenhum movimento ou desenvolvimento para mostrar.”
Juliana me ensina o significado dos corações de seu portão: são um verbo derivado da expressão Sankofa, um símbolo adinkra, original da região de Gana, este símbolo reúne o pensamento e respeito à Ancestralidade e sua sabedoria. Sankofa pode significar "volte e pegue" (san - voltar, retornar; ko - ir; fa - olhar, buscar e pegar) e é associado ao provérbio: Se wo were fi na wosankofa a yenkyi ou "Não é errado voltar atrás pelo que esqueceste."
Aposto que Hegel morreria de inveja se pudesse, através de um desenho tão simples, condensar tão forte ideia.
O que cabe na boca
Repasso rapidamente os nomes de negros importantes brasileiros que ouvi na escola e o único nome que me vem é Aleijadinho. Um único nome.
A cultura africana é oral e foi transmitida ao longo dos séculos dessa maneira, sendo contada, muito mais do que lida, embora como tenhamos visto, outras formas de grafia tenham sempre existido, apenas não as sabemos ler. Na escolha por apresentar obras, o ensino de arte deve muito a essa população que formou a cultura brasileira e continua formando. Muitos dos maiores feitos artísticos de brasileiros vêm da influencia direta de tradições africanas.
Mesmo fazendo-se uso da escrita, a oralidade não poderá ser abandonada, uma vez que o axé também é transmitido através da palavra, do hálito e da saliva; portanto, o silêncio nas casas de candomblé e outras religiões afro-brasileiras é imprescindível. A palavra tem força dinâmica: dependendo do momento em que for pronunciada, a palavra pode ter a sua força sagrada ampliada.²
Comemos palavras: somos antropofágicos ao ter contato com determinados grupos e canibais com outros. Se penso em escolher uma lingerie, ou me preparo para o Réveillon, sei que estou falando francês. Mas se peço um cafuné – palavra mais que deliciosa –, Angola não chega até mim. Decerto não é chic ter axé. Em nossa boca pode caber mais palavras, pode caber um continente.
A palavra pode ter sua força sagrada ampliada – axé! – na arte. Arte e poder deveriam ser sinônimos. Dois trabalhos em destaque, que só conheci agora, tratam das duas questões que me incomodam sobremaneira: a ancestralidade apagada e a real importância da cor da pele (deveria ser nenhuma, mas que significa muito no Brasil e pode determinar uma vida).

Filha natural, 2019. Aline Motta
A artista foi em busca de seus ancestrais e conseguiu acessar registros da porção branca com facilidade. Portugueses, como a maior parte da minha foram. Sua avó materna – a porção negra de sua família –, por outro lado, nem conhecia o pai.
A História é branca – nisto, Hegel estava correto. “Volte e pegue” o coração diz. Volte e pegue, o coração diz para Aline e diz para mim. Através de uma videoinstalação, Aline discute a memória e define o projeto de maneira simples e poderosa:
“É um projeto que fala sobre a minha família, mas poderia falar também da sua.”

Humanae, 2012. Angélica Daas

Trabalho fotográfico que documenta as cores da humanidade, o projeto defende que o que define o ser humano é sua inescapavelmente singularidade e, portanto, sua diversidade. O fundo para cada retrato é preenchido com o tom de cor de uma amostra de 11x11 pixels tirada do nariz do sujeito e combinada com a paleta industrial Pantone®.
A 8 quilômetros da estátua do Borba Gato fica o Museu Afro Brasil, inaugurado em 2004. A cidade, como desde os tempos das bandeiras, é disputada por narrativas e por corpos. É possível ver certo avanço nos últimos anos, como da criação do Museu Afro Brasil e exposições de artistas negros em locais como o MASP. Nas salas de aula, para onde aflui todas as deficiências de nosso país, ainda é preciso muito mais. Por 28 anos fui privada da beleza e reflexão produzida por pessoas com determinadas cores de pele (a partir de qual pantone você será esquecido?). Só agora tive o conhecimento de nomes como Maria Auxiliadora, Rosana Paulino, Emanoel Araújo, Sonia Gomes e Artur Timóteo da Costa (para ficar apenas nos brasileiros).
Começo, portanto, a conhecer a história que não acabou – e que, para muitos, começa agora.

Mobral, 1971. Maria Auxiliadora retrata uma aula no estado de São Paulo.


Sônia Gomes é uma artista contemporânea brasileira que vive e trabalha em São Paulo, Brasil. Ela é conhecida por suas esculturas em técnica mista produzidas, principalmente, a partir de tecidos, fios e outros materiais têxteis além de objetos encontrados, colecionados ou doados a ela.

A prece, 1922. Artur Timóteo da Costa.

Esculturas de Emanoel Araújo
Bibliografia
1“Filosofia da História” de Hegel. Editora UnB, 1995, 2ª edição
2. Candomblé: a panela do segredo, Pai Cido de Ọ̀ṣun Eyin. Editora Mandarim, 2000
ARROYO, Raoni Wohnrath. Uma visão pós-colonialista da filosofia da história de Hegel. 3º Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP
https://web.archive.org/web/20110420131901/http://ctl.du.edu/spirituals/literature/sankofa.cf m The Spirituals Project at the University of Denver. «African Tradition, Proverbs, and Sankofa». Consultado em 6 de março de 2020.
MUNAGNA, Kabengele. Por que ensinar a história da África e do negro no Brasil de hoje? Revista do Instituto de Estudos Brasileiros On-line version ISSN 2316-901X