Conto 'Monofonia'
Morrer não é deixar de ser tudo, até pai?
Pai, eles dizem que a noite é silêncio, eu canto. Dizem que aqui não é meu lugar, fico. As verdades que inventei pela manhã me conduzem feito um maestro, pois é necessário chegar ao fim do dia, chapéu aos pés do microfone, a um só tempo lápide e cofre – afinal, alguém precisa pagar por minha coragem.
Um menino do tamanho de um botijão, perninhas de maria-mole, me escuta boquiaberto, escapa da mão da senhora e chega mais perto querendo tentando descobrindo essa coisa cantada. A irmãzinha, já mulher, observa com a indiferença dos grandes, sapatinho balançando sem perceber. Deve ter cinco anos, essa grande crítica, boquinha de batom pirulito, pés tamanho 27. A mãe vem me entregar dois reais de uma nota sozinha, já à meia-idade da moeda, suja como é todo dinheiro, é o que dizem.
Sou palco sob a entrada da estação, improvisado, um indigente. Buscando o lamento não da garganta, mas do estômago, conto em tom gutural, imerso nas nuances do negro que há em fato esquecido de 1982, quando a vida era toda uma que eu ainda não conhecia. Que saudade do tempo que eu não sabia! Será que alguém decifra meu gemido? Som sem fúria, homem sem espada. Estéril.
O menino também quer me entregar sua gratidão, a mamãe lhe dá uma moeda, ele deposita como flores sobre meu caixão de palha com a expressão solene da prece. Ser dono de um momento assim é melhor do que ter um filho, penso, no espaço particular que nos garante toda música. Foi você, pai, que me contou que casas também têm barbas, as folhas crescendo pelas paredes, você também tinha trepadeiras subindo pelo rosto. Uns pelos fáceis de arrancar / a grama / eu puxava, uma a uma, rindo de tão fácil. Umas claras, vivas; outras murchas / galhos secos / grisalhas.
Você tinha escolhido ser músico porque adorava a febre que sentia antes de um concerto, a adrenalina, pai, você dizia que a emoção tem que ser forte sempre, a vida era espetáculo na tua presença. Esperasse eu crescer e eu não taria cantando aqui no frio, a gente taria junto num estúdio com espuma na sala, você na guitarra, eu seria teu vocalista.
Tinha alguma coisa na música que não havia na vida, pai? Foi por isso que você se atirou, semicolcheia antes do metrô poder parar, bem aqui nessa estação? Pai, até hoje eu me pergunto sobre a paixão difícil de ser revivida, sobre os mistérios da dor que se sente uma vez e na segunda não dói tanto, sobre o tédio, esse homem impotente que nos tira da cama e nos põe para pensar mais do que deveria; reviro cada frase e cada anedota pra encontrar onde tava essa sua ideia idiota, você falou que pai é pra sempre, mas como pode ser pai sem ser? Morrer não é deixar de ser tudo, até pai?
Hoje, eu trago na face a trepadeira que crescia em você. Sabe, pai, eu também sinto tédio, essa senhora com dois pequenos também quer mais tempero no feijão. Quando me lançam uma moeda eu quase interrompo a música, cenho franzido, aquela dúvida infantil a pairar: e se eu também fizesse isso?
