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Sarjeta

Descendo a Rua Angústia, eles vêm caindo suas bundas bêbadas, escondendo o troco que cai dos bolsos, chutando pomba e puta pra poder deitar em mim. Gritam daqui de fora para o dono do bar trazer uma pinga, qualquer uma. Um deles resolveu atirar um pedaço de concreto da minha parte que rachou na calçada, fez respingar uma poça de mijo, o rato que passava entrou num / esconderijo / o bueiro que também é lar.

Airton, Didi e Agnaldo apenas tontos alegres, caipirinha e tiragosto depois da partida, assistindo aos dois sujeitos caídos.

De noite, eles ficam. Geralmente não voltam.

A ruas daqui, ele mora, o Agnaldo. Antes, passava às vezes, pra refrescar a cabeça de trabalho, fazendo a gravata ser frouxa em volta do pescoço, o riso solto etílico, a perna bamba de cerveja, enfim.

Hoje, não.

Também acontece aqui o que é bonito - teve vez que uma cadela pariu cinco. Fiquei toda envaidecida, geralmente é vômito, dessa vez era viscoso de vida, os cachorrinhos sendo lambidos, eu servindo de manjedoura. Um dos filhotes, o que continuou morando por aqui mesmo quando a mãe / aquela cadela / foi atropelada. De todos, foi o rejeitado. Agnaldo resolveu chamar ele de Jesus.

De tanta conversa que já escutei, acabei pegando vocabulário.

Agora, Agnaldo conversa comigo toda semana, o corpo jogado para um lado, a mão pendendo pro outro, como se bêbado fosse alguém que não pode deixar a garrafa fugir. Tem dinheiro. Os outros do bairro só bebem na lata.

Eu sou o limite entre a vida e a morte, a rua e a calçada, entre a terra e o / inferno / o bar. Não é ali que vocês se escondem de tudo que odeiam ou é só o Agnaldo que faz isso?


Gilda vem buscar o marido que não voltou


‘Foi pra isso que você me tirou do inferninho? meu marido é um bêbado, é isso que você é, seu bicho ruim’


‘você quer voltar, Gilda? quer voltar pro puteiro, quer? que é que tem eu beber?’


a mulher, já sentindo o frio da beirada da madrugada, com as chaves de casa numa das mãos, falou em cima do marido o que ele sempre dizia


‘eu trabalho’ o marido falou babando um pouco

‘eu trabalho’ ele falou cuspindo

‘eu trabalho’


Eu também trabalho, ela respondeu. Gilda se virou na direção de casa já sem vontade de ser acompanhada, os ombros de fora, pele arrepiada. Que ele acordasse sendo varrido junto com o lixo, dormisse ali hoje ou para sempre.


‘Você precisava fazer de mim um inferno só seu’


disse para o corpo / o peso / morto que era Agnaldo, vagamente sagrado por trabalhar, olhou pra Jesus com muita pena, cruzou os braços como se aquecesse e foi embora.

Alguns cavam suas covas não na terra, mas no líquido.


    Quando o Agnaldo já está dormindo em casa, por duas horas antes de ir pra firma, as ruas vazias se tornam movimento, eu escuto

um caminhãozinho tocar Beethoven / a musiquinha do gás / no começo da rua

todo dia

é espetáculo

passa professora aposentada puxando carrinho de feira, mães empurrando carrinho de bebê igual a Gilda costumava fazer com a filha, cai folha do maço de flor comprado na feira e até formigas / levando pétala de flor nas costas / flores andando pelo chão / se você olha rápido / antes da chuva.

De dia, é espetáculo. De noite, só os bêbados, porque lá embaixo, eles dizem / o inferno / o bar / se evita

só eu e Jesus moramos aqui.

A Gilda pediu pro Agnaldo cuidar da menina, ela tinha que atender uma cliente antes das festas de fim de ano, foi mesmo sendo sábado, ia ganhar o dobro pelo pé e mão. Metade do que ganhava no puteiro onde atendia o Agnaldo sóbrio, quase sóbrio.

Eu entendo a Gilda porque eu também aceito qualquer coisa.

Eu entendo a Gilda – eu também aceito qualquer coisa.

Ele foi o único que lhe deu de presente, ela só não sabia / formiga / o peso de uma flor

pesando na barriga

no corpo inteiro, não só nas costas.


O Agnaldo passou por aqui mais cedo, levou a menina pelo braço, iam devagar para a pracinha onde Jesus corre atrás das pombas e das putas. Desce até o fim da rua, onde costumava participar do campeonato de várzea do bairro.

Na volta, calor do cão, o suor escorrendo pelas costas. O suor escorrendo pelo copo no bar à sua espera. Resolveu tomar uma enquanto Jesus cuidava da menina. Brincavam juntos até que uma moto passou muito rápido, muito perto, o escapamento enlouqueceu o cachorro que esqueceu que brincava, a menina correndo de costas, as mãozinhas tentando conter um animal agitado, os chinelos fugindo dos passos infantis, não viu meu degrau atrás, de repente um estalo, deitou a nuca como se eu fosse travesseiro

(garrafas partidas

e cacos)

a mãe chega da cliente e não encontra a família em casa. Procura entre os vizinhos, chamou do portão mesmo, alguém gritou a ideia de conferir, só por olhar. Todos sabem que Agnaldo fica onde os outros só passam.

Gilda vem correndo na minha direção. Jesus dormindo no mesmo canto de sempre. 


Demora a entender.


A menina caída na sarjeta ao lado de seu pai.




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