Quando e quanto aceitamos morrer em nome da arte
Em 1974, Marina Abramovic se colocou de pé por seis horas. Em frente à artista, havia uma mesa com objetos de todo tipo: perfumes, rosas, comida, vinho, correntes, tesoura, lâminas, uma arma carregada… As instruções eram as seguintes: Há 72 objetos na mesa que se pode usar em mim como quiser. Performance. Eu sou o objeto. Durante esse período eu me responsabilizado totalmente.
O público começou tímido. Brincaram com a rosa, beijou, mexeram os braços como se ela fosse uma boneca. Aos poucos, as pessoas começaram a ficar violentas. Fizeram cortes em sua pele, chuparam sangue de seu pescoço, até que a arma carregada foi colocada em sua mão, com seu próprio dedo no gatilho. E Marina permanecia imóvel, tentando descobrir até que ponto o público, que já havia se tornado parte da obra, iria.
Marina Abramovic, Ritmo 0, 1974
O que fazem com as mulheres quando se pode
“O que eu aprendi é que se você deixar nas mãos do público, eles podem te matar. Eu me senti realmente violada. Cortaram minhas roupas, enfiaram espinhos de rosa na minha barriga, uma pessoa apontou uma arma para minha cabeça e outra a retirou.”
Em 2007, Britney Spears lançou a música Piece of Me, em que canta: “Eu sou a Miss Sonho Americano desde que eu tinha 17. Você quer uma pedaço de mim? Você quer um pedaço de mim. Eu sou a senhora estilo de vida dos ricos e famosos . Você quer um pedaço de mim.”
A produção da HBO max se propõe a discutir a indústria musical, tendo como protagonista uma child star (artistas infantis que trabalharam para empresas como Disney, e depois lançaram suas carreiras solo, a exemplo de Britney Spears, Miley Cyrus e outras). Desde o início, a série insinua que o principal ponto de discussão será a saúde mental dessas figuras que vivem a pressão por se manterem ativas e rentáveis para a indústria, mobilizando o afeto de milhares ou milhões de fãs, e lançando novos materiais. Longe de comentar a qualidade da série, foco nas duas críticas mais comuns que ouvi: a exploração da nudez da protagonista e o desfecho da história.
Sam Levinson é acusado de objetificar a imagem de mulheres em Euphoria e agora em The Idol. Se no primeiro caso o apontamento é bem fundamentado, no segundo vejo de forma diferente. Jocelyn está sempre seminua em tela, mas não apenas ela. The Idol faz o mesmo com o personagem Izaak. Aliás, todos os moradores da casa de Jocelyn são jovens absolutamente bonitos, de pele à mostra, o que precede o talento, a voz ou capacidade artística. Aqui, a própria escolha de Lily Rose Depp, que não é uma cantora, mas sim uma modelo, exemplifica o que se vê muitas vezes no cenário musical mainstream. A beleza precede o talento. Somente Tedros, o personagem que não é uma estrela, está sempre coberto. Ele não é um objeto como os outros, ele não é consumível.
No primeiro episódio, Jocelyn ensaia a coreografia de um clip. Durante a dança, diversos homens cercam e tocam Jocelyn, muitas mãos. Essa coreografia está presente em tantas carreiras desde Marylin Monroe em Diamonds are a girls best friend! Uma serie de homens desejando a protagonista, a estrela, a mulher alfa, a mais gostosa, o objeto. Na vida real, uma mulher encurralada por vários homens é o pior cenário possível, despertando o mais profundo medo que nós mulheres carregamos.
O olho estupra antes do falo. Este olho é o nosso olho: o olho do público.
Nos anos 2000, muitas capas de revistas de celebridades traziam imagens invasivas de cantoras, socialities e todo tipo de sub e celebridade saindo de carros. Quando se levantavam para sair, suas calcinhas eram reveladas por uma foto de paparazzi. Essas revistas eram vendidas em bancas de jornais e não faltava quem comprasse. A nudez de Jocelyn incomoda não porque seja nudez, mas porque é sempre nudez. O incômodo não vem da exploração em si, mas da obviedade. Não é que a maioria das cenas a mostre assim, mas TODAS as cenas. Ela jamais está perto da normalidade de uma mulher real, ela só existe enquanto essa figura mítica e midiática.
Pensando na premissa de The Idol, creio que essa câmera que coloca nosso olho em contato pornográfico com a personagem me diz mais sobre como nós, a audiência da série, consumidores de música pop e de celebridades, estamos também consumindo, nos alimentando dessas imagens. Em um diálogo entre dois personagens de visões opostas, a mulher diz que a forma como Jocelyn é tratada é desumana. O homem, um aspirante ao sucesso, responde que mas "ela não é um ser humano, ela pertence ao mundo; ela é uma estrela."
“Find what you love and let it kill you.
Encontre o que você ama e deixe isso te matar.”
Ao longo da história, a vida nunca foi a coisa mais valiosa. A honra, a fidelidade aos próprios ideais, o heroismo, um bem maior, a ARTE... tudo isso tem servido como bons motivos para morrer.
Marie Curie morreu em consequência da radiação à qual foi exposta durante seus estudos que lhe trouxeram o prêmio Nobel de Física em 1903. Ao longo da história, 17 astronautas morreram em missões ao Espaço, segundo declaração da NASA em “sacrifício definitivo, para que outros pudessem alcançar as estrelas”. Inúmeros atores e cantores morrem em decorrência do abuso de substâncias que usam para suportar a vida em meio à fama.
Estamos sempre nos deixando matar por um objetivo ou outro.
A crença principal que justifica porque Jocelyn e outros se permitem passar por situações de sofrimento extremo está, outra vez, nas palavras do personagem Izaak: Robert Plant perdeu um filho e, a partir dessa experiência, escreveu All of my love. A dor é aceitável e, em última instância, desejável, desde que resulte em arte.
UM DESFECHO INCOMPREENSÍVEL
Jocelyn é uma personagem altamente traumatizada. Ela se não se apaixona por Tedros APESAR da violência, mas ATRAVÉS da violência. Seu primeiro amor - sua mãe e cuidadora - conduziu sua carreira enquanto lhe batia com uma escova de cabelos, supostamente porque só assim extraía a disciplina e consequente sucesso de Jocelyn. Ao ser informado disso, Tedros, na ausência-morte da mãe de Jocelyn, assume a função de seu empresário e guardião ao mesmo tempo que passa a bater nela com a mesma escova.
Ao final da série, após Jocelyn remover Tedros de sua vida completamente, o que sinalizaria algum tipo de libertação, ela o convida para a estreia de sua tour e, no camarim, eles conversam diante da penteadeira, onde repousa uma escova nova e igual à anterior. Tedros comenta o fato de que a escova é nova e alguns interpretam esta cena como se Jocelyn tivesse mentido sobre os maustratos da mãe. Porém, entendo que, como Jocelyn conseguiu finalizar as músicas por ter, de alguma maneira, se inspirado no relacionamento com Tedros e por acreditar que o sofrimento está a serviço da arte, a fim de se manter em seu lugar de fama, poder e criação, ela aceita-deseja repetir o trauma. Por isso, uma escova nova. Por isso, ela quer Tedros de volta. Se curar e ser uma estrela não são, em sua visão, possíveis ao mesmo tempo. E sua escolha é por se manter uma estrela, uma artista, não uma pessoa.
Os traumas não fazem pessoas mais fortes. Nós já éramos fortes antes deles.
Outro fator para este desencontro entre intenção da produção e opinião do público pode ser a falta de didatismo tão comum em grandes produções. A falta de redenção, de uma vingança, de uma moralidade didática apoiada na ideia de que os bons sempre são recompensados e os maus sempre são punidos não existe no mundo real.
Nikki é uma empresária tão violenta quanto Tedros. Ela força Jocelyn a continuar dançando mesmo quando a artista está com os pés completamente machucados, sangrando. A violência de Tedros não se difere da que todas as pessoas na indústria infringem em Jocelyn.
A performance de Marina Abramovic, 49 anos atrás, mostrou que pessoas comuns, homens e mulheres de diferentes idades, são capazes de fazer coisas terríveis desde que tenham a permissão ou possibilidade para isso. Nossa fantasia está contida em uma coreografia em que uma mulher é rodeada por homens que a desejam, que querem um pedaço dela, uma mordida, seus hematomas, lágrimas e feridas?
Há uma banalidade do mal contida no cotidiano, nas relações micro (de um para um) e nas estruturas de entretenimento, trabalho, economia. Essa maldade banal pode ser reconhecida em um grande evento, mas raramente a enxergamos em nós, em nossos pequenos prazeres sádicos.
Enojados e ofendidos, assistimos The Idol até o final. Só para dizer, do alto de nossa moralidade, que odiamos... Assim, para que nunca nos assumamos cúmplices. Seria possível nos reconhecermos parte das obras, assumindo e repensando o papel que nossos olhos desempenham? Quando sentimos desprezo e odiamos tão intensamente uma produção como The Idol, poderíamos pensar em que medida estamos implicados na violência demonstrada ali
O que temos feito para que essas celebridades e artistas, ao mesmo tempo idolatrados e violentados, sejam tratados como seres humanos se exigimos deles tudo menos humanidade? Se nem conseguimos considerá-los pessoas? Queremos um pedaço delas?
Dada a permissão, colocaremos uma arma apontada para a cabeça de quem nos deu liberdade? A arte é só uma bela forma de morrer?
I'm Miss American Dream since I was seventeen
You want a piece of me? You want a piece of me
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